sexta-feira, 5 de setembro de 2025

5197) Silvio Tendler, 1950-2025 (5.9.2025)



 
O cinema brasileiro perdeu hoje um diretor que dedicou sua vida inteira ao documentário e construiu com sua obra “uma sala por onde todo mundo tem que passar”, como dizia um amigo meu. 
 
Não conheço a maior parte da obra de Silvio Tendler, que é numerosa. Suas compilações sobre a história do Brasil, enfocando Juscelino Kubitschek, João Goulart, Milton Santos, Glauber Rocha, Josué de Castro, etc., são registros preciosos não apenas da nossa História mas da maneira de abordá-la. 
 
A maneira de abordá-la!  Quanta tinta tem sido gasta na tentativa de equacionar esse problema.   
 
Silvio, que não cheguei a conhecer pessoalmente, foi um dos entrevistados da série televisiva A Persistência da Memória de Paola Vieira (Canal Curta, 2023), em cujo roteiro colaborei. A série aborda o fenômeno “memória” de vários ângulos; um deles é a reconstrução da memória pessoal e coletiva através do cinema, especialmente do documentário. 
 
Aqui:
https://canalcurta.tv.br/series/a-persist%C3%AAncia-da-mem%C3%B3ria
 
Peço licença a minha diretora e à Luni Produções para transcrever aqui alguns trechos das respostas de Silvio, quando entrevistado em 2021. O cinema chamado de “documentário” é algo menos imparcial e menos objetivo do que vulgarmente se entende por aí afora. A palavra “documento” é uma palavra enganosa: sugere a existência de uma verdade que ninguém ousaria contestar, algo objetivo, invulnerável à crítica. Isso não existe. 




Cada “documentarista” cria sua própria verdade. É um documento? É, mas é como se uma pessoa pegasse um retângulo de papel e desenhasse ali uma carteira-de-identidade, desenhando a própria foto, a própria impressão digital, as próprias informações, e depois assinasse com sua própria assinatura. 
 
Dizia Silvio, a certa altura: 
 
São coisas que você vai guardando da infância, da adolescência... E aí, quando você vai fazer cinema, você vê com muito mais simpatia, então eu acho que esse desejo que a gente tem, de contar histórias, está profundamente ligado às lembranças da infância. Eu acho que memória é aquilo que a gente quer lembrar, né? Você tem também uma lembrança oculta que você não quer contar. Você sabe coisas de você que você não revela pra ninguém: é só tua memória oculta, a tua lembrança que você guarda só pra você mesmo, e se te perguntarem você vai negar de pés juntos até a morte – mas você sabe da existência daquela memória. Acho que memória é isso, memória é desejo. Eu olho muito do ponto de vista da história, a memória não como âncora, mas como bússola. 
 
A “pessoalidade” (o contrário de “impessoalidade”) que orienta o documentário é exemplificada por Silvio com uma memória de sua própria infância, memória criadora de um vínculo emocional que acabou, muitos anos depois, direcionando seu trabalho como cineasta. 
 
Eu fui fazer [um filme] usando JK por uma lembrança de infância. Eu tinha dez anos de idade, em 1960, estava no carro com meu pai ali no recém construído Aterro do Flamengo. No final, já, do governo JK, o Rio de Janeiro estava deixando de ser a capital, estava se transformando em [Estado da] Guanabara. E um dia nós estávamos indo para a Zona Sul vindo do centro, para casa, para Copacabana, e meu pai emparelhou com um carro (...) e eu olhei para o carro ao lado e era o JK, o Juscelino Kubitschek, aí eu olhei e abri a janela pra ver o Presidente. E ele me viu, viu que eu estava olhando pra ele, ele abriu a janela e deu aquele sorrisinho dele, e me cumprimentou com aquele aceno clássico. A criança nunca mais esquece isso, essa é a coisa que você nunca mais esquece. E isso está na raiz de um filme político, que é Os Anos JK (1980). 
 
Pode soar parecido com o narcisismo e o umbiguismo que hoje vigoram nas redes sociais, em que o Eu é sempre o centro de tudo. O Eu, no entanto, é o mais frágil dos centros. É “o centro que não consegue se sustentar”, no dizer do poeta Yeats. O que mais rapidamente desmorona no sumidouro da inexistência (ou no da insignificância, que é maior e mais fundo). Não importa: o Eu é tudo que cada um de nós possui, e no caso de quem faz algum tipo de arte é o ponto para onde convergem (para onde parecem convergir) todas as linhas do mundo.  



Um artista, e ainda mais um documentarista de cinema, tem uma percepção mais vasta do quanto a História é um oceano onde bóia o torrão de sal do Eu antes que se dissolva. E sabe o quanto são significativos, para as pessoas comuns, esses contatos de raspão com a História, com o mundo das Pessoas Importantes. O mundo dos “olimpianos”, como dizia Edgar Morin, aqueles de quem ouvimos falar diariamente, mas que sabemos existir num universo paralelo a que dificilmente teremos acesso. 
 
E tentamos compensar isso com esses momentos breves: o autógrafo do autor best-seller, a selfie com o astro pop.  Nesse momento, o fã anônimo se sente existir pela primeira vez no “mundo de verdade”, o mundo das pessoas famosas que aparecem na TV e nas revistas. 
 
Para uns, o mundo do Glamour. Para outros, o mundo do Poder. 
 
E a verdade é que no momento da filmagem (inclusive da entrevista filmada) e principalmente no momento da montagem (ou da “edição”, como está se dizendo agora) o Documentarista é um deus-pequenino manipulando as figuras históricas como se fossem action figures de seu jogo pessoal. 
 
O conceito de documentário tem fronteiras distantes, inquietantes, movediças; é uma espécie de “Área X” onde quem penetra volta transformado.  E essas fronteiras não são um marco de cimento no meio de uma imensa pradaria deserta. São como aquela fronteira Brasil/Uruguai bem no meio de uma cidade super movimentada, uma calçada fica num país e a calçada em frente já está no outro. 




Fazer documentário envolve uma porção de gente identificando material, preservando, restaurando, indexando, acessando, escolhendo, reeditando, reinterpretando, refazendo. Uma cadeia de pessoas que em geral trabalham silenciosamente, anonimamente, à revelia umas das outras, às vezes separadas por intervalos de milhares de quilômetros ou de dezenas de anos. 
 
Olha, esse trabalho é fundamental, essas pessoas apaixonadas por fotogramas, que adoram o cheiro de acetato, de ácido acético, né? São maravilhosas, né? Eu tenho o orgulho e a honra de ter começado talvez com o mais brilhante deles, que foi o Chico Moreira. Ele começou comigo no Anos JK, ele era um estudante de cinema da UFF e aí eu fui trabalhar na Embrafilme, dirigia um programa chamado “Coisas Nossas” e me deram o Chico como assistente. Aí, durante a realização desse programa, eu percebi que ele conhecia muito mais cinema do que eu, ele era um apaixonado por cinema, ele ia todas as noites ao cinema, conhecia todos os filmes, tinha uma coleção de lentes, coleção de revistas, etc. Aí quando eu comecei a fazer o som do JK, a colecionar aquele material na Cinemateca do MAM, o Cosme Alves Neto me convidou para organizar o arquivo do MAM e eu falei, “Cosme, não, eu vou botar na mão da pessoa que mais entende disso, não sou eu, é o Chico”. Aí o Cosme ficou chateado, achou que era mentira, que eu não estava querendo pegar o trabalho, mas o Chico aceitou e foi longe, continuou nessa carreira, fez curso no exterior, foi pra FIAF [Federação Internacional de Arquivos de Filmes] e tal...  Então eu acho que ele é o primeiro grande conservador do cinema brasileiro. Depois a Cinemateca Brasileira organizou isso também, se equipou, conseguiu equipamentos e profissionais muito bons, tem o João Sócrates, que hoje mora em Londres, que também organizou essas técnicas para você recuperar e preservar acervos... Você tinha em Curitiba o Valêncio Xavier, com essa gama de pessoas apaixonadas por cinema... Você tem a Myrna Brandão e o marido dela aqui no Rio de Janeiro, que também começaram a salvar filmes... A Alice Andrade, que salvou o acervo do Joaquim Pedro, você tem a Paloma Rocha que salvou o acervo do Glauber, e a Maria Hirszman que salvou o acervo do Leon, né?  
 
É uma conspiração de pessoas que habitam porões com ar condicionado e salas escuras. O documentário – e aqui penso no “documentário na mão de quem monta”, mais do que “na mão de quem filma” – sobrevive por essa guilda de gente para quem o cheiro de vinagre é carregado de poesia. 




Mal comparando, a montagem de documentários a partir de material de arquivo (material antigo, já existente, não filmado pelo mesmo diretor) é uma espécie de quebra-cabeças. No joguinho de quebra-cabeças, ou puzzle, temos que encaixar peças umas nas outras a partir de dois critérios: 1) As peças precisam se encaixar fisicamente (as curvas das bordas precisam coincidir com exatidão); 2) Depois de encaixadas, as peças precisam reproduzir um desenho, que o jogador vai descobrindo aos poucos (ou já vem proposto na própria caixa do brinquedo). 
 
No documentário, é preciso haver esse encaixe no corte, na passagem de uma imagem para a seguinte (por corte seco, fusão, escurecimento, etc.). Mas a figura que vai ser revelada no final é uma criação do documentarista. Não estava prevista em cada peça isolada. É como se as peças do puzzle estivessem todas em branco, e à medida que as encaixasse uma na outra ele fosse pintando um quadro. Uma Obra.  
 
Dizia Silvio, lembrando um ensaio famoso de Walter Benjamin: 
 
São duas questões diferentes: o excesso de informação, e a permanência. O Benjamin, quando escreveu A Obra de Arte na Época da sua Reprodutibilidade Técnica ele estava tirando a aura do cinema como objeto único. Hoje a coisa se inverteu. O cinema é objeto único, porque apesar de você ter inúmeras cópias, você não se dispersa na quantidade de informação que você recebe. Você assiste um filme inteiro, e o filme transmite uma idéia de começo, meio e fim. Você tem ali uma continuidade. Ao contrário do que há no “zap” e todas essas outras informações que circulam por todos os meios: elas são fragmentadas, elas são dispersas, então você recebe tanta massa de informação por dia que no final do dia você não lembra quem te mandou o quê... Essa informação se perde porque teu cérebro não tem a capacidade de armazenar toda essa informação que a gente recebe. Agora – o “objeto único” tem. Então, quando você quer falar de uma Era, você não cita um filmete que você recebeu por zap, que você não lembra nem onde ele está. Você cita um filme que você assistiu e que vai te falar daquele momento. 
 
O filme-pronto se salva porque tem começo, meio e fim. Tem um fio de pensamento costurando tudo, e é esse fio que o salva. Tem uma mente ordenadora por dentro de todos aqueles fragmentos. E o resto que fica fora do filme é apenas uma farofa de grãos de imagem. 



 
 
 
 




sábado, 30 de agosto de 2025

5196) Luís Fernando Verissimo, 1936-2025 (30.8.2025)





O maior escritor brasileiro em atividade estava inativo há alguns anos, quando sofreu um AVC que agravou seu estado já debilitado pelo Mal de Parkinson. Não, não é esta a melhor maneira de começar um texto sobre uma pessoa tão pouco melodramática quando Luís Fernando Verissimo. 
 
Um cartunista, um saxofonista e um torcedor do Inter entram num bar e sentam no balcão. O barman pergunta: “O senhor vai querer o quê?”. Também não é a melhor saída. O pastiche é a mais avarenta forma de homenagem. 
 
Hoje é o dia em que todo sujeito como eu, que ganha (perde) a vida batucando num teclado sente-se no dever agradecido de pegar uma pedrinha qualquer na beira da estrada e vir colocá-la aos pés da deusa invisível que habitou aquele sujeito simpático e tartamudo. 
 
Devemos muito a ele aqui no Brasil, porque o fato de termos um DNA barroco não nos condena a afundar no barroquismo unânime. Precisamos do contrário, que não sei aqui como nomear, mas seria uma prosa com elementos de coloquialismo, maleabilidade, nitidez, simplicidade na-mosca, imprevisibilidade constante. 
 
A prosa de Verissimo tinha um segredo, que não revelarei aqui, mas era o mesmo segredo que fez os egípcios moverem aqueles blocos de granito como se fossem pacotinhos de algodão. Ele passou a vida fazendo isso diante dos olhos de todo mundo. 
 
Em algum texto antigo já me referi aos “começos-de-conto” de Verissimo e denominei esse modo de escrever “o estilo Saíram-Do-Bar-E-Foram-Andando”.   
 
Porque bastava a ele um pontapé-inicial desse tipo para se instalar, com 100% de credibilidade, ao volante da mente do leitor, e conduzi-lo para onde bem quisesse.
 
Saíram do bar e foram andando. De repente, João bateu com a mão no bolso traseiro da calça.
-- Minha carteira!  Perdi.
-- Perdeu não, idiota. Você deu de presente à garçonete, e nem foi à bonitinha, foi à que parecia com Robert de Niro.
 
Isso aí não é de Verissimo, claro, é meu, improvisei agora, para testar pela milésima vez o poder mágico desse mote inicial. Saíram do bar e foram andando! As palavras, especificamente, pouco importam. Basta que sejam capazes de invocar um portal de simplicidade e consenso. Perguntem a Nelson Rodrigues, a Fernando Sabino, a Mario Quintana. 
 
Em teatro e música existe um conceito que a gente chama às vezes de “presença de palco”. É um mini-carisma específico, uma magia-de-bolso que serve para aquilo e para nada mais; mas serve. A atriz surge no palco, avança alguns passos.  Antes que ela diga um oi, baixa o silêncio; todo mundo engole em seco e prende a respiração. 
 
Existe uma Presença ali, e essa presença dá credibilidade (ou seja, no dizer do poeta: Verdade e Beleza) a qualquer coisa que aconteça em seguida. 
 
Escrever é como discursar diante de um teatro repleto, mas com os olhos vendados. Nunca temos certeza de nada, mas é preciso exibir segurança em tudo.  A segurança de um dançarino de tango que já dá o primeiro passo sabendo o que vai fazer, e a segurança de um folião de rua que ao som do frevo começa a marcar o passo sem ter a mínima idéia do movimento que vai fazer em seguida. Existe uma equação do Tao embutida em tudo. Precisamos do Flexível capaz de se firmar, e do Firme que saiba fluir.   
 
Eu estava há pouco deslizando telas no celular e vendo nelas todas as mesmas Duas-Datas-Fatídicas, e o mesmo rosto bonachão e de óculos, com aquele meio sorriso de quem tenta se tornar invisível pelo mero esforço da vontade; e do-nada tropeço numa entrevista de George Martin, o quinto Beatle. 
 
Eu estava no estúdio quando me disseram: “Vamos trazer um grupo novo para você dizer se vale a pena produzir.” O nome era um nome brega, The Beatles, com A. Quando eles entraram... As canções eram banais, mas havia neles uma eletricidade, um carisma, uma presença... Quando eles saíram, eram como se alguém tivesse ido embora. E eu pensei: Se eu me senti assim, o público talvez se sinta também. 
 
Dou esse contra-exemplo porque Verissimo (disclaimer: nunca o encontrei pessoalmente) parecia fazer o possível para se esvaziar de carisma. Lembrava aquela conversa de Paulo Coelho, de que certas práticas da magia ritual tornam possível alguém cruzar um salão cheio sem ser visto por ninguém. 
 
Todo o carisma de Verissimo, por assim dizer, foi investido na sua escrita, como alguém que deposita todo o seu dinheiro no mesmo banco. 
 
Verissimo apostou todas as suas economias literárias (e eu acrescentaria: toda a sua herança, que não foi pouca) numa fórmula simples que não precisarei descobrir, porque Ítalo Calvino (Seis Propostas Para o Próximo Milênio) já o fez por mim: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade, consistência. 
 
Nada disso vem às nossas mãos para cancelar ou desmentir o nosso lado barroco, onde habitam Guimarães Rosa, o Padre Vieira, Coelho Neto, Jorge de Lima, Ariano Suassuna, Osman Lins, Euclides da Cunha e outros igualmente imprescindíveis.  
 
A contrapartida da exuberância barroca é a escrita dos que limpam a prosa até deixar o osso alvejando, dos que com dois ou três riscos de tinta permitem ver uma catedral ou uma ninfa nua, dos que em três linhas de verso conjuram uma floresta invernal, dos que nas dez páginas de um conto embutem a biblioteca do absurdo. 
 
Precisamos do Muito que se apóia no Pouco, e do Pouco que contém o Muito. 
 
Numa homenagem ao mestre acontecida alguns anos atrás, amigos gaúchos (alô, Fraga!) me pediram uma colaboração, e enviei um texto, “Verissimo e a Marca do Zorro”, onde dizia: 
 
(...) Verissimo ganhava a gente (o leitor jovem) por diferentes motivos: o humor, o nonsense, a linguagem, as situações, a comédia humana... No meu caso, era isso tudo e mais uma coisa: o exemplo de uma escrita de destreza absoluta, capaz de jogar qualquer leitor dentro de qualquer situação com duas ou três linhas, às vezes menos do que isto.
 
Temos entre nós a tendência ao nariz de cera, ao prelúdio interminável, por isso eu admiro quem apresenta uma situação complexa “em rápidas pinceladas”, como se diria antigamente. Como Machado – que nem sempre fazia isso, mas quando o fazia parecia a espada do Zorro traçando um “Z” mais depressa do que o olho podia acompanhar. (...)
 
Duas ou três linhas; e a isca foi mordida. Mordi o anzol de Verissimo com vinte e poucos anos, e até hoje deixo que ele me leve para onde está indo. 
 




segunda-feira, 18 de agosto de 2025

5195) I. A. -- a salsicha literária (18.8.2025)



 

Entre o “texto literário produzido por uma Inteligência Artificial” e o “texto literário produzido por uma pessoa” existe um parentesco indiscutível, e ao mesmo tempo uma distância abissal. Ainda não sei qual dos dois é maior, se o parentesco, se a distância. 

Um está para o outro assim como uma salsicha está para um bife. 

Minha impressão é que o texto da I. A. (Inteligência Artificial) obedece aos mesmos princípios produtivos da acumulação de carnes de toda natureza, que são moídas, homogeneizadas e embutidas em formatos-padrão, por meios puramente mecânicos. A interferência humana vai somente na linha da criação e eventual supervisão desse processo. Uma vez posto em movimento, o processo procede por si só. 

Muita gente prefere negar a existência da Inteligência Artificial. Ou melhor: negar-lhe o direito à existência, na esperança de que diante de muitas negativas as empresas que investiram centenas de bilhões de dólares nessa tecnologia fechem as portas e peçam desculpas. 

Como se diz na Paraíba: “cochila!...”. 

“Cochila!” quer dizer “perca as esperanças!”, mas duvido que alguma I. A. saiba disso. Dificilmente terá pirateado algum texto onde essa expressão apareça. 

Minha resistência pessoal à I. A. é pela sua incapacidade robótica de distinguir, entre os hectares de texto que consulta em fração de segundo, entre Baden Powell, o fundador do escotismo, e Baden Powell, o violonista dos “afro-sambas”. 

 


Amigos meus já consultaram o Chat GPT a meu respeito e obtiveram a resposta de que nasci no Rio de Janeiro em 1965, e sou autor de meia dúzia de livros cujos títulos li de cima a baixo e nunca vi mais gordos. 

Quem pode confiar numa engenhoca tão incompetente?!   

O pior é que quando dizemos “você está errado” o robozinho abre um sorriso parvo e diz: “Peço desculpas! De fato eu estava errado na minha resposta.” E fica por isso mesmo. Ainda bem que é consulta sobre literatura! Se fosse consulta médica (como tem muita gente fazendo) o paciente já estaria rumo ao crematório. 



A I. A. é um mero processo estatístico de cortar-e-colar textos alheios baseando-se em índices de probabilidade, mas é um processo meramente mecânico. Não existe uma inteligência por trás. Não existe uma mente humana (ou um conjunto delas) olhando, interpretando, avaliando, decidindo. Existe uma impressão de presença humana, muito espertamente preparada por quem manipula esses algoritmos. Mas ela é tão humana quanto aquelas gravações dos saites das empresas, aquelas aveludadas vozes femininas que nos dizem: “Por favor, permaneça na linha! Sua ligação é muito importante para nós!”. Você acha que ela está sendo sincera?... 

Ferramentas desse tipo não parecem com uma inteligência criando; são um mero desenvolvimento dos corretores ortográficos que ficam nos sugerindo a complementação de palavras. Quando numa caixa-de-diálogo eu digito “BRA...”, ele me sugere “Brasil”, “Braulio”, “Brasa”... Ele pesquisa em fração de segundo quais as palavras que mais frequentemente foram escritas por quem digitou essas três letras iniciais, e pergunta: “É isso aqui que você está querendo dizer?” 

Corretores ortográficos dessa natureza têm uma orientação estatística. Tendem a sugerir as palavras que aparecem com maior frequência. E no caso dos geradores de texto tendem a sugerir as frases que aparecem com mais frequência nas centenas de milhões de páginas que acumulam nos seus arquivos.  

(Aqui entraria uma digressão interminável sobre a legitimidade ou não do uso desses milhões de páginas sem autorização dos autores; mas esta é outra discussão. Eu, que sou autor, considero isto um roubo, aquilo que a gente chama “tomar na mão-grande”. Há milhares de ações correndo na Justiça, no mundo inteiro, mas não sou otimista quanto ao resultado. Tem muito dinheiro pesando no lado de lá da balança.) 


O uso dos ChatGPTs e similares me lembra a anedota que se conta sobre Horace Gold (1914-1996), o antigo editor da revista Galaxy, uma das principais publicações de ficção científica dos anos 1950-60. Diz-se que Gold, um reescrevedor incansável dos contos alheios que publicava, era capaz de transformar uma história medíocre numa história boa, e uma obra-prima numa história boa. Ele medianizava tudo. 

Um artigo de Kyle Chayka no The New Yorker, “A. I. Is Homogenizing Our Thoughts”, comenta assim os “Modelos de Linguagem em Larga Escala” (LLMs, Large Language Models): 

A Inteligência Artificial é uma tecnologia das frequências médias. Os Modelos de Linguagem em Larga Escala (LLMs) são treinados para detectar a ocorrência de padrões dentro de imensos volumes de dados; as respostas que encontram têm portanto uma tendência para o consenso, tanto na qualidade da escrita, que é repleta de clichês e banalidades, quanto no calibre das idéias.


 

É uma reiteração do mais frequente, do que foi utilizado mais vezes e com isto demonstra o quanto é útil.  

É útil mesmo?  Sem dúvida. Se eu quiser redigir uma “Carta de Anuência” confirmando minha participação num projeto, basta fornecer à I. A. os dados do projeto e ela redige para mim esse texto que tem forçosamente que ser reto, enxuto, padronizado, sem nuances, sem lugar para dúvidas. 

Se eu precisar de um contrato de locação de imóvel, de uma autorização para viagem de um menor de idade, de um relatório de viagem de trabalho, é só fornecer os dados em-bruto e o programa organiza tudo, bonitinho, com um texto enxuto e esclarecedor. (Ou pelo menos é esta a esperança de quem usa.) 

Por esse motivo os usos principais dos LLMs, ao que se diz, estão nas atividades ligadas a Tecnologia, Negócios, Direito, Comércio etc. – onde a produção de textos não visa a originalidade, mas a clareza / objetividade / eficiência / etc. 

Nessas áreas, pelas estatísticas que vi circulando por aí, o uso de Inteligência Artificial chega a 75%; curiosamente (ou talvez não) na área da Literatura ocorre uma das menores percentagens de uso da I. A.  Penso eu: “É claro, porque a literatura, embora tenha seus usos para clareza e objetividade, lida também, e muito, com a polissemia, a ambiguidade, a elipse, a metáfora, ou seja, usos subjetivos da linguagem”. 


A questão é que dentro da área da Literatura, mesmo sendo uma das menores percentagens, ela chega a 40%. É muito. É muita literatura mediana sendo produzida, mas... Vamos pegar o feijão-com-arroz literário de dez anos atrás, de trinta anos, de cinquenta anos atrás. Não estarão ali, com frequência aterradora, e como consequência apenas de escolhas humanas, os mesmos clichês, as mesmas expressões consagradas, as mesmas idéias cediças, os mesmos lugares-comuns ideológicos, as mesmas opiniões padronizadas que circulam numa população ansiosa por aceitação, acolhida, reconhecimento sem muita polêmica? 

A I. A. não inventou o texto-salsicha, apenas turbinou sua produção. 

O algoritmo das Inteligências Artificiais é de uma natureza específica, mas as escolhas humanas têm também o seu algoritmo, se as observarmos numa escala de milhões de exemplos. Somos mais estatísticos do que imaginamos. Nossas “opiniões pessoais” são mais coletivas do que gostaríamos de admitir. A Inteligência Artificial está surgindo, talvez, para nos dar uma sacudida. Quando percebemos o quanto ela na verdade é burra e cega, percebemos também o quanto, ao longo dos séculos, nossa mente humana coletiva também tem sido cega e burra. 


(Em breve: um artigo em defesa da I.A.)

 


segunda-feira, 11 de agosto de 2025

5194) A riqueza e o lixo (11.8.2025)




 
Uma sociedade de consumo como a nossa produz mais (muito mais) do que necessita, e desperdiça grande parte do que produz. 
 
Se a Cultura age assim, a Contracultura teria que lançar um contraponto. Viver do desperdício alheio seria, então, uma estratégia legítima, do ponto de vista econômico e do ponto de vista moral. 
 
E não apenas do desperdício, mas das incontáveis brechas que um sistema como esse abre dentro de si mesmo. 
 
Numa crônica publicada na revista Locus (# 582, julho de 2009), Cory Doctorow lembra: 
 
Eu tinha 15 anos quando me caiu nas mãos uma cópia ensebada de Steal This Book, a obra clássica de Abbie Hofmann, um manual ensinando a cair fora do sistema, sobreviver a custo zero, e aplicar pequenos golpes. O livro estava repleto de dicas fascinantes: como produzir o som que liberava a linha para ligações interurbanas nos telefones públicos, como organizar a loja de uma cooperativa, como reciclar pneus fabricando sandálias, como produzir um jantar saqueando as latas de lixo de um restaurante. Fiquei fascinado, e naquele verão reli o livro uma dúzia de vezes. (trad. BT)
 
Doctorow nasceu no ano em que o livro foi publicado, 1971, o que atesta a permanência da mentalidade contracultural que o produziu. Canibalizar os excessos do sistema é uma opção quase inevitável para quem não apenas se recusa a trabalhar para ele, mas precisa também dar-lhe algum prejuízo, ainda que num gesto meramente simbólico e pessoal. 
 
Há outro aspecto mais preocupante. No meio século desde o livro de Abbie Huffmann, acho que o consumismo passou por uma mudança – para pior.  Houve uma fase em que a compra descontrolada de coisas era tratada como um problema comportamental, principalmente nos EUA. Hoje, é um apocalipse coletivo. 
 
Os norte-americanos não sabem o que fazer com tanto dinheiro, ou melhor, sabem: comprar coisas desnecessárias e depois jogá-las fora. Produziram para si mesmos uma civilização em que o prazer de Ter tornou-se maior que o de Fruir, e ambos são menores que o de Comprar. É o mundo da shopping-terapia, onde tantas neuroses são empurradas para baixo do tapete, e toda semana compra-se um tapete novo. 
 
Lembro de uma época em que uma mulher com mais de dez pares de sapatos era apelidada de “Imelda Marcos” – nome da mulher do ditador das Filipinas, possuidora de mais de 1.000 pares de sapatos. Ter muitas bolsas, muitos vestidos, muitos ternos, muitas gravatas, tudo isso era o pecado do consumismo. 
 
E não apenas os burguesões acomodados cediam a isso, porque no mundo artístico o que nunca faltou foram casas com mais de 3 mil DVDs, mais de 4 mil discos, mais de 5 mil livros, e assim por diante. Perdi a conta das cenas de filme ou livro em que uma esposa jovem pergunta, em desespero: “Querido, você precisa mesmo  de uma décima-quinta guitarra?...” 
 
Cada um gasta seu dinheiro como bem entende, diz a sabedoria popular enxugando as mãos junto à bacia de Pilatos. A questão é que hoje, cinquenta anos depois, o que era neurose individual e talvez inofensiva tornou-se uma psicose coletiva de dimensões catastróficas. 




É impossível não achar isto quando se vê um filme como o documentário de Nic Stacey, A Conspiração Consumista (Netflix). O filme mostra em etapas sucessivas o gigantismo da máquina de consumo desenfreado que hoje em dia arrasta o mundo pelos pés. Ninguém escapa: Amazon, Unilever, Apple, Adidas são apenas algumas das empresas cujos ex-executivos são entrevistados no filme e abrem o jogo, sempre no tom de “eu não consegui continuar colaborando com aquilo”. 
 
Na verdade, o consumismo não é uma conspiração, assim como não há conspiração alguma quando todas as pessoas de um barco correm para o mesmo lado e o fazem virar. É apenas “a natureza da fera”, é o escorpião que morre afogado mas precisa ferrar o sapo que o transporta. 
 
Cada empresa procura apenas maximizar seus lucros, e todas pagam excelentes salários a pessoas inteligentes para que lhes tragam as soluções mais radicais. 
 
O filme resume em cinco partes essas soluções: 
 
1.       Vender mais
2.       Mentir mais
3.       Desperdiçar mais
4.       Ocultar mais
5.       Controlar mais
 
“Compre, compre, compre”, repetem mecanicamente, invisivelmente, as mensagens espalhadas pelo mundo inteiro, lembrando os códigos subliminares do filme They Live de John Carpenter. 




E os resultados são ótimos, nos gráficos apresentados aos acionistas, e nos depósitos de dividendos. Mas o mundo está sendo cada vez mais soterrado por esse excesso de produção. São pessoas gastando um dinheiro que (às vezes) não têm para comprar coisas de que não precisam – precisam do ato de comprá-las, e depois as coisas serão jogadas fora, descartadas, queimadas, enterradas, não importa. Importa que a compra aconteceu. 
 
No filme, Mara Einstein comenta: “Se você tiver que levantar da cama, pegar o carro, ir à loja, escolher o produto, pagar no caixa, trazer o pacote... isso é muito trabalhoso. Mas agora você pode Comprar Com Um Clique e o pacote é trazido até a porta de sua casa.” 
 
As estatísticas que eles compartilham são curiosas. 
 
2,5 milhões de sapatos produzidos por hora 
68.733 celulares produzidos por hora 
190.000 peças de vestuário por minuto 
12 toneladas de plástico por segundo 
13 milhões de celulares jogados fora todos os dias 
 
Não sei se são verdadeiras, mas são verossímeis, o que já é um alerta. Sabemos que o mundo é capaz disto. 
 
A “obsolescência programada” encurta a vida útil dos produtos para que eles possam ser comprados mais vezes. E a empresa não pode correr o risco de que os que vão para o descarte (os que ninguém comprou) vão parar nas mãos de mendigos ou de desocupados. É preciso danificá-los, torná-los inúteis, uma coisa que ninguém queira, ninguém aproveite. Há funcionários encarregados apenas de inutilizar as peças que vão para o descarte, rasgando roupas, malas, casacos; quebrando telas de aparelhos; riscando mídias eletrônicas, etc. É preciso inutilizar antes de descartar. 


(Carros da Audi abandonados no deserto de Mojave)

 
Anna Sacks (@thetrashwalker) é uma entrevistada que se dedica a tentar recuperar alguma parte desse material, catando produtos descartados e jogados no lixo. Sua atividade faz um link interessante com outro filme, Os Catadores e Eu (2000) de Agnès Varda. Nesse documentário, a diretora francesa investiga e entrevista, em princípio, os glaneurs, pessoas que catam frutas, legumes, etc., não recolhidos nas colheitas. A partir daí, vai fazendo conexões com outras ocupações paralelas, até chegar a um grupo de jovens estudantes meio sem-teto que saqueiam o lixo de um supermercado atrás de comida. 
 
Um velho ditado popular fala que só existem ricos onde há pobres, e vice-versa. Não é só o futuro que está mal distribuído, como queriam os escritores cyberpunk; o presente também.   
 
Cui bono – é uma pergunta clássica que sempre incomoda um pouco. “A quem isto beneficia?”. Um sistema de desperdício proposital é tão suicida (em termos coletivos) que deve ser útil para alguém, na mesma proporção. Em nosso caderno há nomes famosos: Jeff Bezos (que aparece nesse documentário da Netflix), Elon Musk, Bill Gates e outros. Mas estes são apenas os que cabem no círculo estreito dos holofotes. E os milhares que ficam na sombra? 


 

O conto “The Totally Rich” do inglês John Brunner (em Worlds of Tomorrow, 1963; publicado em livro em Out of My Mind, New York, Ballantine, 1967) conta a história de uma mulher riquíssima que tenta manter-se eternamente jovem, e ao mesmo tempo quer ressuscitar o namorado que já morreu. Um eco do clássico Ela, a Feiticeira (“She”, 1887) de H. Rider Haggard. 
 
John Brunner faz uma reflexão, neste conto, sobre a vida dos superbilionários. (É a parte profética do conto, porque os “totalmente ricos” de hoje possuem fortunas que 50 anos atrás eram inconcebíveis mesmo para autores de FC.) 
 
Diz ele:
 
“Eles são os totalmente ricos. Você nunca ouviu falar neles porque eles são as únicas pessoas no mundo ricas o bastante para poder comprar o que desejam: uma vida totalmente privada. (...) Quantos deles existem, eu não sei. Tentei calcular o total somando o PIB  de todos os países da Terra e dividindo pela quantia necessária para comprar o governo de uma potência industrial. Não preciso dizer que você não pode ter privacidade total se não for capaz de comprar pelo menos dois governos. Acho que deve haver uma centena dessas pessoas. Já conheci uma delas, e provavelmente outra. (...)
 
“Eles não estão no mapa. Entende isso? Literalmente, qualquer lugar onde eles escolham viver torna-se um espaço em branco nos atlas. Não estão nas listagens do Censo, nem no Quem é Quem, nem no Pares do Reino Britânico de Burke. Não aparecem nos registros de imposto de renda, e o correio não tem seu endereço. Pense em todos os lugares onde o seu nome aparece: registros escolares amarelecidos, arquivos de hospitais, notas fiscais de lojas, documentos assinados. Em nenhum desses lugares o nome deles está visível.
 
“Eles não são governantes absolutistas. Na verdade, não governam coisa alguma a não ser o que lhes diz respeito diretamente. Mas eles se assemelham àquele Califa de Bagdá que encomendou a um escultor “a fonte mais bela do mundo”. Quando ficou pronta (e era bela de verdade) ele perguntou ao escultor se havia algum artista capaz de superá-la em beleza. O escultor afirmou que não. O Califa disse: Paguem a ele o que foi combinado, e arranquem os seus olhos”
 


 
 




terça-feira, 5 de agosto de 2025

5193) Anotações sobre a poesia (5.8.2025)



("Você disse que era escritor, mas é poeta!...")

 
Um poema pode dizer uma coisa, e logo em seguida dizer o contrário. O poema não precisa necessariamente ter (como às vezes nos ensinam na escola) “uma idéia central” que é preciso descobrir qual é. Às vezes ele tem duas idéias centrais, ou mesmo três. 
 
“Qual a idéia central do poema?” Infelizmente é um tipo de abordagem que muitos professores assimilaram anos atrás, quando eram estudantes, e ficam repassando para as novas gerações. Pode-se ler de mil maneiras um poema sem a obrigação de procurar “idéias centrais” onde elas não existem. O fato de existir uma idéia central nos poemas A e B não quer dizer que tenha de existir a mesma coisa nos poemas C e D. 
 
O mesmo se aplica a um (ou uma) poeta, a uma pessoa. Ser poeta é ser contraditório, porque a experiência humana é contraditória. 
 
“Eu sou trezentos, sou trezentos e cinquenta”, dizia Mário de Andrade. É um dos grandes versos de nossa literatura. 
 
Ser contraditório não é dizer a verdade e depois dizer uma mentira: é dizer a verdade de cada momento. Ontem eu estava com calor, hoje estou com frio. Ontem eu estava tranquilo, hoje estou com raiva. Ontem eu gostava dessa música, hoje estou achando insuportável. 
 
Violeta Parra, a grande poeta e “cantadora” chilena, criou o que me parece o ponto mais alto dessa contradição poética com duas de suas canções. 



 
Muitos brasileiros conhecem “Gracias a La Vida” pelas gravações (ao vivo e em estúdio) de Mercedes Sosa, que durante muitos anos tocaram muito no Brasil. 
 
GRACIAS A LA VIDA
Gracias a la vida que me ha dado tanto
Me dio dos luceros que, cuando los abro
Perfecto distingo, lo negro del blanco
Y en el alto cielo su fondo estrellado
Y en las multitudes, el hombre que yo amo
 
Gracias a la vida que me ha dado tanto
Me ha dado el sonido y el abecedario
Con él, las palabras que pienso y declaro
Madre, amigo, hermano y luz alumbrando
La ruta del alma del que estoy amando
 
Aqui, ao vivo:
https://www.youtube.com/watch?v=INZ1OfRDuE8&t=92s  
 
A mesma Violeta Parra compôs esta outra canção, uma canção de desespero e revolta, que repete o refrão: “Quanta será a minha dor?”. 


 
MALDIGO DEL ALTO CIELO
 
Maldigo del alto cielo
la estrella con su reflejo,
maldigo los azulejos
destellos del arroyuelo,
maldigo del bajo suelo
la piedra con su contorno,
maldigo el fuego del horno
porque mi alma está de luto,
maldigo los estatutos
del tiempo con sus bochornos.
Cuánto será mi dolor?
 
Maldigo la cordillera
de los Ande y de la costa,
maldigo toda la angosta
y larga faja de tierra,
también la paz y la guerra,
lo franco y lo veleidoso,
maldigo lo perfumoso
porque mi anhelo está muerto,
maldigo todo lo cierto
y lo falso con lo dudoso.
Cuánto será mi dolor?
 
Aqui, em gravação:
https://www.youtube.com/watch?v=P12pwUSR5V0&list=RDP12pwUSR5V0&start_radio=1
 
Dois extremos opostos, na voz poética da mesma pessoa: um ponto máximo de alegria de viver, e um ponto máximo de desespero e desengano com a existência. 
 
“Não sou alegre nem triste: sou poeta.” (Cecília Meireles). Outro grande verso de nossa literatura. 
 
O poeta (a poeta) registra o que lhe passa na alma em seu atrito com a existência. Pode ser um calor reconfortante, e pode ser um fogo que ninguém suporta. 
 
Sentimentos opostos coexistem em cada pessoa, e podem coexistir num mesmo poema, às vezes num mesmo verso. São o registro sismográfico dos abalos que alguém sofre ao longo da vida, ou às vezes ao longo de uma tarde. 




Poucos poemas começam com um pessimismo existencial tão grande quanto “A Flor e a Náusea” que Carlos Drummond de Andrade incluiu em A Rosa do Povo (1945). A começar pela alusão explícita à angústia existencial de Jean-Paul Sartre (La Nausée, 1938). 
 
Devo seguir até o enjoo?
Posso, sem armas, revoltar-me? (...)
O tempo é ainda de fezes, maus poemas,
alucinações e espera. (...)
Vomitar esse tédio sobre a cidade. (...)
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal. (...)
Pôr fogo em tudo, inclusive em mim. (...)
 
O poeta segue pela rua afora – e eu sempre visualizo esse poema na Avenida Rio Branco, já que o poeta trabalhava ali pertinho, no Palácio Capanema da Rua da Imprensa. 
 
E nesse momento ele vê uma flor brotando do asfalto!  
 
Eu não sou muito chegado a flores como símbolo de beleza, paz, pureza, amor, o que seja; afinal de contas, é um dos clichês mais reciclados da literatura. Mas li esse poema pela primeira vez com uns dezesseis anos. Era talvez o leitor ideal para essa cena que se segue, tão visual, tão cinematográfica – um filme em preto-e-branco, com imagem trêmula, câmera na mão. 
 
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, novens maciças avolumam-se,
pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.
 
Verso final que ouvi ecoar muitos anos depois, na voz do deputado Ulysses Guimarães, durante a promulgação da Constituição de 1988: “Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo.” E a Constituição foi naquele instante, para quem ouvia, uma espécie de flor. Feínha, mas uma flor.




Poemas servem também para isto, para mostrar estados de espírito contrários. O objetivo do poema é o mesmo de um filme, um romance, uma peça de teatro etc.: sacudir a consciência individual e o inconsciente coletivo. Abalar firmezas e abolir certezas. Tirar a mente do leitor pra dançar. 
 
Um poema é como um telegrama: algo compacto, intenso, urgente, para ser aberto com presságio e lido com alumbramento. E não estranhem o anacronismo da metáfora, mesmo que nunca tenham recebido um telegrama. É como diz, mais uma vez, Carlos Drummond: 
 
Não há criação nem morte perante a poesia. 
Diante dela, a vida é um sol estático, 
não aquece nem ilumina. 
(“Procura da Poesia”, em A Rosa do Povo).






 
 





quarta-feira, 30 de julho de 2025

5192) O trabalho que enlouquece (30.7.2025)




 
Trabalho é uma coisa boa, ou uma coisa ruim? 
 
Nós crescemos num ambiente de feroz dualidade. Na vida informal, todo mundo reclama do trabalho e elogia a diversão. Todo mundo odeia a segunda-feira. Todo mundo celebra o fim-de-tarde da sexta (é a cultura do SEXTOU!), porque vem por aí o fim de semana que implica em descanso ou divertimento. 
 
Por outro lado, o discurso ideológico no diz que “o trabalho enobrece”, “o trabalho dignifica”, e quando esse argumento de índole moral não é o bastante, nos dizem que “sem trabalho ninguém sobrevive”, “sem trabalho você não vai ter como financiar o seu lazer, nem os seus prazeres, nem sequer os seus vícios”. 
 
Há divergências, é claro, mas todos nós ouvimos variações desse discurso. O trabalho é ruim, mas é necessário. Quer dizer então que não existe trabalho bom? 
 
Curiosamente, há pelo menos duas categorias profissionais em que já ouvi dezenas de vezes algo assim: “Sou um cara de sorte, porque me pagam uma boa grana para fazer a coisa que eu mais gosto no mundo!” Esses profissionais são os músicos e os jogadores de futebol. Mesmo quando o cara ganha apenas o suficiente para sobreviver sem sustos ele se acha um cara de sorte. Porque gosta muito do que faz. 
 
Há muitos outros, sem dúvida. Deve haver mais gente nessa faixa do que imaginamos. Publicitários. Professores (sim, alguns ganham bem). Motoristas. (Conheci motoristas profissionais que diziam: “A única coisa que eu gosto é dirigir.”) 



 
Quero falar, porém, do extremo oposto. Dos trabalhos que ninguém quer executar, e só executa porque está MUITO precisado de dinheiro. Já tive um professor de Economia que usava sempre o “limpador de fossas sanitárias” como exemplo do trabalho detestável, mas socialmente imprescindível. (Como dizem nos filmes norte-americanos: “It’s a dirty job, but someone has to do it”.) 
 
Trabalho de estivadores, carregando peso na cabeça. Cassacos de engenho, cortando cana num sol de 40 graus. Empregadas domésticas esfregando diariamente cada centímetro de uma casa enorme. 



Alguém executaria esses trabalhos, se não fosse pago? Somente por diversão, por exercício? Ou (como tantas vezes dizemos) “para adquirir experiência de vida”? Talvez – se for o caso daquela pessoa que, depois de adquirida a experiência de vida, volta para seu apartamento com ar condicionado, manda trazer cervejas e conta para os amigos: “Eu tive duas semanas que me ensinaram muitas coisas importantes”. Vida que segue. 
 
É diferente a situação de quem está preso a uma classe social e não tem nenhuma rota de fuga, provavelmente vai ter que pegar-no-pesado pelo resto da vida. Alguém pode até tentar se consolar, pensando que é melhor uma mercadoria entregue do que uma mercadoria parada, ou uma casa limpa do que uma casa suja. Existe algum propósito no que está fazendo, existe alguma utilidade. “Eu estou aqui me matando, dirigindo esse ônibus no sol do verão, mas as pessoas vão chegar em casa com segurança.” 
 
O problema é que na maioria desses empregos brutais a relação patrão-empregado é mais brutal ainda. O patrão, em vez de atenuar os desconfortos, procura torná-los ainda mais cruéis, para que o trabalhador não esteja ali defendendo a feira da semana, e sim a própria vida. 
 
Já vi patrão, em momento descontraído à mesa de um bom restaurante, comentar: “Eu podia pagar ao meu pessoal o dobro do que pago, não ia abalar um fio de cabelo nas minhas finanças. Mas aí eles iam começar a gastar dinheiro, a se inchirir, a arranjar distrações, a querer melhorar de vida... Comigo não!...” 




Há uma pequena parábola, que li na infância, provavelmente na revista Sesinho, editada por Vicente Guimarães (o tio de Guimarães Rosa, vejam só). Era a revista recreativa do Serviço Social da Indústria (Sesi), que meu pai recebia todo mês. 
 
O autor da parábola contava ter chegado a um canteiro de obras onde estava sendo erguida uma catedral. Perguntava ao primeiro operário: “O que você está fazendo?” O homem respondia, secamente: “Quebrando pedras.” Ele perguntava o mesmo ao segundo, que respondia, resignado: “Estou ganhando o sustento da minha família.”  E depois a um terceiro, quase eufórico, que explicava: “Você não vê? Estou construindo uma catedral!”. 
 
São níveis diferentes de envolvimento, mas em todos eles existe um mínimo de sentido. De projeto pessoal. Mesmo o cara que está quebrando pedras pode extrair certo prazer do ato de quebrar uma pedra bem certinha. Ou então de visualizar na pedra a carantonha do capataz, e descer-lhe a marreta. Algum prazer a gente sempre encontra. 
 
Existe um outro tipo de trabalho, no entanto, que é a versão grotesca do trabalho desagradável. É o trabalho propositalmente absurdo, que não resulta em nada, não beneficia ninguém, e é imposto a uma pessoa como castigo, ou como processo de enlouquecimento deliberado. 
 
Prisioneiros são muitas vezes obrigados a tarefas sem sentido – passar a manhã inteira cavando um buraco, e a tarde inteira recolocando a terra no lugar, todos os dias, no mesmo local, sob vigilância. (Me pergunto às vezes se a vigilância disso não será, também, uma forma de punição.) 



(Van Gogh, "Prisoners", 1890)

 
Algumas cadeias obrigam os prisioneiros a marchar sem parar, em círculo, para se desgastarem fisicamente, e também para facilitar a vigilância. Van Gogh pintou um quadro famoso sobre esse tema, que aparece também em filmes como Irma La Douce de Billy Wilder e Laranja Mecânica de Stanley Kubrick. 



(Stanley Kubrick, Laranja Mecânica, 1971)


São atividades desgastantes, sem sentido, sem resultado. Uma forma de cansar o corpo e de embotar a mente através da repetição sem propósito. 
 
A revista eletrônica Jacobina publica uma entrevista do antropólogo norte-americano David Graeber, em que ele comenta os diferentes graus de necessidade ou de absurdo no trabalho. Destaco aqui alguns trechos (trad. Fábio Fernandes). 
 
https://jacobin.com.br/2020/09/a-ascensao-dos-empregos-de-merda/
 
 “Você pergunta a qualquer marxista sobre trabalho e valor-trabalho, eles sempre vão imediatamente para a produção. Bem, aqui está uma xícara. Alguém tem que fazer a xícara, é verdade. Mas fazemos um copo uma vez e lavamos dez mil vezes, certo? Esse trabalho simplesmente desaparece por completo na maioria desses relatos. A maior parte do trabalho não é produzir coisas, é mantê-las iguais, é mantê-las, cuidar delas, mas também cuidar de pessoas, cuidar de plantas e animais. (...) 



(David Graeber)

 
“Em teoria, você está recebendo algo por nada, você está sentado aqui sendo pago para fazer quase nada, em muitos casos. Mas isso simplesmente destrói as pessoas. Há depressão, ansiedade, todas essas doenças psicossomáticas, locais de trabalho terríveis e comportamento tóxico, agravados pelo fato de que as pessoas não conseguem entender por que tem motivos justos para estar tão chateadas. 
 
“Porque, sabe, por que estou reclamando? Se eu reclamar com alguém, eles vão dizer: “Pô, você está ganhando algo por nada e ainda está reclamando?” Mas isso mostra que nossa ideia básica da natureza humana, que é inculcada em todos pela economia, por exemplo – que todos nós estamos tentando obter a maior recompensa com o mínimo de esforço – não é realmente verdade. As pessoas querem contribuir com o mundo de alguma forma. Então, isso mostra que se você dá às pessoas uma renda básica, elas não vão sentar e assistir TV, o que é uma das objeções.”